quinta-feira, 25 de novembro de 2010

mini conto

"Foi atingida por cadeiradas e socos ficando desacordada. Resultou em dois braços e dois dentes quebrados. A direção da escola se reunirá objetivando qualificar melhor os seus mestres".

sábado, 23 de outubro de 2010

Yo no creo, pero que las hai...

Gostava de contar a história. Repetia-a para os filhos, para os netos, para as visitas. Apesar dos oitenta anos não esquecia detalhes. A bruxa existia, sim, ela mesma a vira. O pai e a mãe também. Teria talvez uns doze anos, idade suficiente para saber que não sonhava, viu mesmo! Foi quando nasceu o menino, seria o quinto, irmãs tinha já três. Moravam em Taquari, terra da laranja. A cidade era pequena. A rua de chão batido de terra vermelha era ladeada por casas simples, de madeira, algumas um pouco melhores, outras feitas de remendos, poucas vistosas. Como em qualquer cidade pequena todos se conheciam e por isso mesmo tudo se comentava.
Quase na frente da sua casa morava uma vizinha que competia com Seu Pedro e Dona Manuela em número de filhos. Sabe como é, naquele tempo não tinha pílula, comentava Vó Virgínia. Sete meninas. Não se deveria ter sete filhos do mesmo sexo. O primeiro ou o último seria bruxo, ou bruxa como no caso das filhas da vizinha. Era a fala do povo.
O irmão teria uma semana de vida quando ao anoitecer ouviram todos um tropel, gritaria e gargalhadas vindas da rua. O barulho era anormal. Correram todos. Vó Virgínia, o pai Pedro e a mãe Manuela com o pequeno nos braços. Foram à janela olhar o que havia lá fora. Os cães latiam endemoniados, a lua cheia clareava já os telhados iluminando tudo, inclusive aquela figura de mulher montada sobre um cavalo, cabeleira arrepiada, roupas esvoaçantes, gargalhava e a galope sumiu no fim da rua.
O que teria sido aquilo? Quem seria a horrenda criatura? Um arrepio perpassou todos que viram a cena. Em choque, assustados fecharam a janela sem acreditar no que viram. Mas, a noite não foi de sossego não, porque o menino não dormiu. Chorou a noite toda, a semana toda, não quis mais comer, entrecruzou aos poucos os bracinhos e as pernas. Foi levado a uma benzedeira. Este menino está embruxado. Precisa ser batizado. Mas o padre não quis batizar não, porque primeiro tinham ido na benzedeira. Seu Pedro e Dona Manuela e mais todos ficaram atônitos, consternados, culpados até... o menino poderia morrer... por favor seu padre! Nada. E o menino definhou...definhou...finou-se sem ser batizado.
O acontecido foi comentado em todos os cantos e recantos do bairro e a sétima filha da vizinha passou a ser apontada na rua, ou seria a primeira? Isto vó Virgínia não seberia dizer.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Mandalas de água

Abriu os olhos e espreguiçou-se. Acordou com o barulho dos pingos e o chiado constante de uma chuva que caía lenta, contínua. O dia anterior havia sido quente, de um sol espraiado, de um céu sem nuvens, de brigadeiro como se diz, por isto a chuva era uma surpresa. Ana Rosa bocejou, era tão cedo ainda, seis horas quando muito. Cobriu-se melhor, enroscou-se nas cobertas, aninhou-se outra vez na cama. Era esta a sensação que lhe causava a chuva lá fora, de aconchego. Sensação que a remetia para longe no tempo, para seus porões, para sua infância mais precisamente. Que ano seria aquele? 1950? 51 ou 52? Ana Rosa não teria mais que cinco anos quando a enchente chegou. Nunca tinha visto aquilo. Junto com as irmãs, menores ainda que ela, debruçava-se na janela. Se é que se pode chamar de janela um buraco quadrado que fechava-se com duas folhas de madeira. Não havia vidraças e assim ficavam com meio corpo para fora a espiar a enchente. Era tão alta aquela janela. Lá embaixo, na água suja e barrenta os barquinhos de papel flutuavam. Extasiadas, hipnotizadas por aqueles círculos concêntricos, por aquela mandala de água que cada barquinho provocava, Ana Rosa e as irmãs torciam para que a pequena embarcação chegasse à outra margem. As crianças eram as únicas que se divertiam com tudo aquilo. Para os adultos, um caos. A casa de madeira estava úmida. Saia-se da casa ou entrava-se nela com água quase nos joelhos. Sorte que a casa era alta. A noite chegara. Está igual àquela de 41! Ouvia a conversa dos grandes. Lembrou-se do pai, capa e bota e ainda assim encharcado, chegando do escuro molhado da noite e admirou-o. Seu pai não tinha medo do escuro, nem da enchente. Ana Rosa por sua vez esperava amanhecer novamente para atirar mais barquinhos de papel à água e ficar olhando aqueles círculos formarem-se e ampliarem-se até bater na margem extinguindo-se. Aquela contemplação a extasiava. Sabe-se lá aonde aquilo a conduzia. Voltava a si pelo chamado da mãe. Vem comer a banana Ana Rosa! E assim o chiado da chuva ao acordar e as mandalas de água lhe ficariam guardadas na memória para sempre junto com o sentimento de aconchego e proteção. Crianças são assim mesmo, vêem beleza até no meio da desgraça. Outro bocejo e Ana Rosa virou-se para o lado, acomodou novamente as cobertas e adormeceu. Sonhando viu casebres de madeira na beira da estrada rodeados de água da chuva. Em muitos deles haveria crianças brincando com barquinhos de papel. No sonho o aconchego misturou-se a um incômodo sentimento de culpa. Por que tinha que ser assim?

domingo, 17 de outubro de 2010

Porões

Outro dia fiz uma visita. Conheci o local de trabalho de artesãos aprendizes. Fui descendo escadas um... dois... três... degraus... mais alguns... mais pra baixo... o cheiro do barro seco, da argila molhada entrando nas minhas narinas. Respiro um ar úmido. Ao redor peças esculpidas... uma moranga, um rosto, uma concha. No fundo uma saída para um pátio com árvores antigas, folhagens e um banco de jardim. De repente não estou mais ali. O porão é outro, muito antigo. Uma casa sobre ele. Subo as escadas e reconheço a casa da vó de fora. Assim nós a chamávamos para diferenciar da nossa avó Marieta que vizinhava conosco em Porto Alegre. A casa no bom estilo italiano ficava nos arredores de Barbosa, quer dizer, município de Carlos Barbosa. Ficava no alto, encravada em terreno irregular. Na frente uma sala ocupava toda a largura. A porta principal dava para o avarandado e enfim para o jardim. O terreno continuava acidentado de modo que depois do jardim subia-se uma ladeira e chegava-se então aos trilhos do trem. Sim, o trem passava por ali, dividindo ao meio as terras do meu avô. O trem passava todos os dias pela manhã e à noite. Para mim era uma festa. Ouvia-se o apito estridente da locomotiva e corriam todos para ver o trem. Abanávamos para passageiros desconhecidos que vez por outra retribuíam os acenos. Claro que isto acontecia quando as netas da cidade estavam lá, porque de resto o acontecimento era ordinário e ninguém se preocupava com ele. Um corredor, com quartos de ambos os lados, uma peça ampla com mesa comprida para refeições, cozinha separada e o porão. Ah! O misterioso porão. Não nos permitiam muito ir ao porão. No meio da noite ouvíamos muitos sons vindos de lá. Alguma coisa caía estrepitosamente. São os ratos! Mas tem rato no porão? Outras vezes tínhamos a nítida impressão de passos. Raposas! Raposas? Aquele porão da minha infância permaneceu para sempre nos meus porões, cheio de mistérios nunca muito bem esclarecidos. Retorno... Olho ao redor e aprecio os objetos de arte expostos nas bancadas. Todos me parecem misteriosos.

Labirinto

Era moda. Vestidos chemisier rodados, abotoados na frente, floridos e levemente longos. Deixavam as silhuetas esbeltas, femininas. Estela aderira ao modismo. Achava-se mais bonita e atraente. Estaria na época em torno dos quarenta e cinco anos. Era uma mudança porque costumava vestir roupas mais sóbrias como terninhos e blaisers em tons pastel. Quando ia para a escola notou sorrisos e gestos gentis dos motoristas dos ônibus. Comentara o fato algumas vezes. Aos poucos foi tornando-se desconfiada. Passou a queixar-se. Agora, aquelas mesmas pessoas diziam-lhe piadas, dirigiam olhares irônicos e falavam frases a pessoas próximas. Frases enigmáticas que só Estela entendia, sabia que aquilo era com ela. Por vezes freavam bruscamente, principalmente quando precisava descer do veículo. Passara a usar as lotações. Buscava o banco mais protegido porque o ar condicionado estava sempre no mínimo de temperatura. Estela sentia frio, muito frio. Iria adoecer na certa. Aquilo era só para ela pegar uma gripe. Depois começaram os cochichos, os olhares, os sorrisinhos e brincadeiras que Estela achava de mau gosto. Dizia que tudo havia começado entre os taxistas. Havia um ponto ali mesmo na esquina da rua onde Estela morava. Estavam sempre lá falando, gesticulando, rindo. Principalmente quando Estela passava. Deixou de usar os vestidos chemisier. Conhecia aquele de pele morena, já com bastante idade que comprava comida no prédio onde vez ou outra Estela pegava seu almoço. Era o pior de todos. Tinha certeza que ele espalhava boatos maldosos a seu respeito. Evitava passar pelo ponto. Agora só pegava carros de praça quando não havia alternativa. Queixou-se para o pai e para o cunhado que também eram motoristas de táxi. Estes resolveram dar uma incerta no local e ver o que estava acontecendo. Tomariam providência, se Estela, veementemente não os proibisse de fazê-lo. Dizia que poderia ser pior. Tinha medo. Depois foram os carros. Muitos carros que buzinavam quando passavam em frente ao prédio onde Estela morava. Principalmente à noite ou pelo amanhecer quando tudo ainda estava em silêncio ouvia o roncar de carros que arrancavam bruscamente ou ainda uma buzina estridente justo na frente do seu prédio. Sobressaltava-se. Achava tudo uma provocação.
Um dia chegou apavorada na casa da irmã. Andavam sobrevoando de helicóptero o prédio onde morava. Aquilo já era demais, Estela não sabia mais onde se meter, estava em pânico. Eram uma máfia aqueles motoristas. Foi quando a irmã teve a certeza. Já estava desconfiada. Quando tentava falar sobre a veracidade dos fatos Estela ficava desesperada por sentir-se desacreditada. Não. Não estava louca. Tinha certeza. Dez anos tinham se passado desde que tudo começou. Olha Estela, aquele moreno do táxi já deve ter morrido, pois já era uma pessoa de idade. Isto não faz mais sentido. Alzira insinuava apenas uma terapia e bastava para que ela fechar-se em copas. Durante algum tempo não falava mais na situação, porém percebia-se que sofria. O tempo passava e o terror era cada vez maior, mas Estela silenciava. Deu graças a Deus quando se aposentou. Também não suportava mais as perseguições na Escola. Era uma dedicada e excelente professora. Em seu último dia de trabalho recebeu homenagens e presentes de colegas e alunos.
Agora havia os vizinhos. Falava baixinho dentro de casa. No apartamento ao lado ficavam sempre colados à parede ouvindo o que Estela fazia. Se ligasse o rádio ou a TV tinha sempre que ficar com o som muito, muito baixinho. Os vizinhos implicavam com isto. Não gostavam que Estela fizesse barulho. Entrou em pânico quando um dia sua barriga começou a fazer ruídos e gases escaparam sonoros. Pronto. Foi um comentário geral. Estela via que as pessoas do condomínio riam, falavam e a olhavam de soslaio. Novamente foi sugerido um psicólogo. Eram conversas dolorosas para Estela. Olha, se é verdadeiro ou não todos estes acontecimentos, isto não interessa. O que importa é o mal que tudo isto está te fazendo. Precisas de medicação pelo menos contra a depressão que tudo isto te causa. Visto por este prisma a irmã até tinha razão. Estela finalmente aceitou, estava deploravelmente exausta.

Quanto tempo de sofrimento. Morava sozinha desde os trinta anos. Não dera sorte no amor ou de alguma sorte fugira de todos os homens que dela se aproximaram? Estela fora uma menina bonita, uma adolescente graciosa, uma linda moça e aos quarenta e cinco anos uma bela mulher quando as perseguições começaram. Separada dos pais em tenra idade vivera desde os cinco anos na companhia de uma velha tia de seu pai. Pelos nove a mãe de Estela morrera enfartada em um manicômio. Aos quinze passou a viver com o pai e a madrasta até que aos trinta resolveu comprar seu próprio apartamento. Estela estava agora com sessenta anos. Passou a freqüentar um psiquiatra e já não falava mais tanto de motoristas e perseguições. Ou talvez apenas se calasse. Talvez até ela mesma duvidasse da veracidade dos fatos e isto a torturasse ainda mais.
Em compensação passou a cuidar freneticamente do seu corpo. Alimentava-se com ansiedade. Temia perder os rins como acontecera com a irmã mais nova. Tinha gastrite e prisão de ventre crônica. Parou de comer carne, usar sal, tomar café. Comia cada vez menos. Emagrecera. Outro dia ficou internada com arritmia. Passou a contar os batimentos cardíacos com freqüência e a perambular por consultórios médicos variados. Sua salvação era a ioga, ou sua fuga. Talvez sua criança interior tenha perdido a proteção em tenra idade e continuasse lá, trancada em um recôndito de sua alma, com medo do mundo, seguindo uma viagem por estradas internas que invariavelmente desembocavam umas nas outras. Estradas sem saída.

Parece que não existe evasão para Estela, uma janela, uma porta. Seu inconsciente teria vindo à tona submergindo-a. Agora uma declaração de amor aos sessenta anos fizera Estela sorrir. Colocou brincos, pintou as unhas de rosa bebê, deu um trato na pele e uma coloração diferente nos cabelos. Seria capaz de matar o minotauro que vivia dentro de si? Teria encontrado o fio de Ariadne que a conduziria para fora do labirinto da natureza humana em que se perdera?

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Se eu voltasse a ser criança

Se eu fosse criança outra vez me lambuzava no pó mágico de Peter Pan
voaria com ele pro mundo da lua só pra galopar no cavalo de São Jorge
Se eu fosse criança outra vez pegava carona no redemoinho do Saci
pra ver o sapo cururu e a mãe d’água cantar
na lagoa encantada bem no meio da floresta
Se eu fosse criança outra vez fugiria com Alice pro País das Maravilhas
Visitaria a princesa do castelo e a casa dos sete anões,
depois, daria uma volta na abóbora da gata borralheira

Se eu voltasse a ser criança faria o que sempre fiz
Sumiria dentro de um livro que é onde eu era feliz.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Parafuso

Meu inconsciente confuso
mistura nomes, palavras
poesias silêncios mudos
Gira, girando, girassóis e não
dá pra ver o que tem no fundo
fuso deste parafuso